Foi uma longa viagem
até Malange, a província natal das grandes palancas negras, esse símbolo da
selecção angolana em vias de extinção. Algo se destaca ao longe, no meio da
savana, parece uma manada de elefantes em fila indiana. Mas as sombras agigantam-se
e eis-nos perante as Pedras Negras de Pungo Andongo, anomalias geológicas com
milhões de anos.
Como se não bastasse
a sua imponência (algumas erguem-se a mais de 250 metros do chão), o lugar está
possuído de uma aura de magia, talvez por causa de todos os mitos e lendas que
se lhes atribui. Dizem que os reis Ngola se refugiaram em Pungu-a-Ndongo
e aqui praticaram torturas ou bacanais (depende da versão). Aqui terão deixado
ainda as suas pegadas, uma é atribuída ao rei Kiluange e outra à rainha Ginga. Pegadas bem grandes, por sinal, nada
prováveis para uma senhora, mesmo com estatuto quase sobrenatural.
Infelizmente, as
sombras alongam-se e o Miguel apressa-nos. As estradas não têm iluminação
pública e não lhe apetece partir um eixo, num lugar onde os telemóveis são inúteis.
Há que chegar a Kalandula antes de anoitecer completamente.
Na manhã seguinte, espera-nos
uma das mais belas 7 Maravilhas Naturais
de Angola: as Quedas de Kalandula. Conhecidas como Quedas Duque de Bragança,
no período colonial, são as segundas em ordem de grandeza do
continente e fazem-se anunciar sonoramente logo que estacionamos. Como acontece
nas Cataratas de Vitória, no rio Zambeze, parece que "o fumo troveja".
Infelizmente, não
estamos sozinhos. Várias crianças costumam deambular por ali, pedindo uma
moeda, em troca da vigilância do carro ou de uma visita guiada. Mas hoje o
lugar está particularmente apinhado,
graças a um grupo de adolescentes de uma igreja evangélica, que veio acampar. Realmente,
não parece nada de extraordinário face ao esmagador potencial turístico do
sítio. Acontece que os garotos nos perseguem, com um misto de curiosidade e, em
alguns casos, uma pontinha de provocação.
Tenho que me sentar pacientemente numa pedra, com vagares de budista, até a maior parte se desinteressar destes estranhos alienígenas, algo pálidos por sinal. Só então conseguimos apreciar a beleza das águas que se precipitam alegremente, de 105 metros de altura, para continuarem depois mais mansamente o seu curso no Lucala, o maior afluente do Kwanza.
Os habitantes dizem que aqui não há jacarés, mas as águas escondem outros perigos: sereias que atacam os visitantes solitários e lhes sugam o sangue....
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Com uma extensão de 410 metros e uma altura de 105, as Quedas de Kalandula são as segundas maiores de África |
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O pequeno Domingos, a apreciar as frutas cristalizadas do bolo rei. |
O sol envergonhou-se.
Aliás de noite caiu uma chuva miúda (e eu que sonhei ver uma verdadeira
tempestade africana) pelo que os dois famosos arco-íris não apareceram hoje.
Normalmente são dois, um casal, dizem os angolanos.
Cruzamo-nos com outra
família estrangeira que parece constrangida com a atenção que suscitou. Está visto que não
conseguiremos um momento de meditação neste lugar maravilhoso, pelo que
voltamos à estrada, não sem antes entregar o bolo rei que nos resta ao pequeno
Domingos. O miúdo de 10 anos fez um trabalho fantástico a vigiar o carro, enquanto
nos seguia para todo o lado... Pergunto-lhe se anda na escola. Diz que sim,
está na 3ª classe.
- Gostas de estudar?
- Sim senhora, estou quase a aprender a
escrever.
- Como? Mas não andas na terceira classe?
- Sim senhora, mas fica difícil escrever o meu
nome...
Não sei o que
replicar a tal argumento, pelo que me limito a entregar-lhe o bolo prometido, que
agradece com um sorriso, divide com um amigo e engole com gula.
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Cliquem nas imagens, para aumentar. Hoje vale a pena. |
Surpreendentemente, o Miguel ainda nos quer levar às Quedas de Musseleje, a 20 km. Após uns rápidos cinco quilómetros de asfalto, espera-nos quinze de picada
africana, após uma noite de chuva. Que aventura!
Sentimo-nos
exploradores no meio deste nada, cercados por vegetação. De longe a longe, um
kimbo esquecido pelo mundo interrompe a paisagem, com casas feitas de adobe
e telhados de colmo ou zinco. As
crianças acenam, sorridentes, enquanto as cabras se afastam calmamente do
caminho. Pedem-nos bolachas, bolachas, sempre bolachas. Suponho que qualquer
guloseima seja rara num sítio onde não há água canalizada, electricidade, gás
ou casas de banho.
E não são só as
crianças que pedem.
- Mamã grande, uma bolacha pra nha filha.
- Não tenho - lamento eu, profundamente
(porque raio não meti meia dúzia de pacotes de bolacha Maria no saco?). Ela
encolhe os ombros, num paciência! e
segue o seu caminho.
Adiante, paramos para
pedir indicações, porque não há placas. Que digo eu, se nem sequer há sinais de
trânsito, se nem sequer há estrada! Temos que voltar para trás, diz uma senhora
de voz meiga, com um bebé preso nas costas. Sorri, um sorriso grande, aberto, sem maldade e eu tenho vontade de
sair do carro e perguntar-lhe tanta coisa.
Se é feliz ali,
apesar de faltar tudo aquilo que consideramos básico. Sabe, é que nós lá na parte
de cima do mundo andamos muito infelizes com a vida, com os impostos, os
políticos corruptos, o colesterol e outras ninharias. Queria muito
perguntar-lhe o que espera da vida, que sonhos lhe sustentam o coração, como
põe comida na mesa.
Controlo a minha
curiosidade, que direito tenho eu de lhe pedir que desnude a alma?! E seguimos
para as Quedas de Musseleje, modestas em comparação com as anteriores, mas
todas para nós. E aqui, finalmente, sentamo-nos, respiramos fundo, deixamos o
pensamento vaguear.
Não sou a mesma
pessoa antes e depois desta viagem. Só não sei
colocar essa mudança subtil em palavras...
P.S. Depois de tantos os pedidos, aqui
fica mais um vídeo, mas desta vez não é caseiro.